A cada quatro anos, a xenofobia contra o povo nordestino se acentua durante todas as eleições nacionais. Nunca falha! Na última, o mais virulento ataque partiu do empresário mineiro e prefeito de Betim, Vittorio Medioli. Em sua coluna para o jornal O Tempo, do qual é dono, ele constatou a existência de “dois Brasis: um que produz mais e arrecada impostos, e outro (…) que vive das transferências de renda”. Segundo o bolsonarista, a vitória de Lula “ampliou o inconformismo dos que produzem muito e se consideram submissos à decisão de estados mais distantes do centro da produção industrial”. Para resolver esse problema, Medioli propôs a separação de alguns estados do país para “dar a Lula o que é de Lula e a Bolsonaro o que é de Bolsonaro”.
Nesta semana, um outro mineiro, também político e empresário, revelou estar liderando uma articulação para dar uma resposta política para esse “problema” que atordoa Medioli e tantos outros sulistas e sudestinos. Em entrevista ao Estadão, Romeu Zema, governador de Minas do Partido Novo, anunciou a criação de uma frente política em defesa do Sul e Sudeste, batizada de Cossud, oConsórcio Sul-Sudeste. Durante a explicação sobre o consórcio, o governador comparou o Brasil a um produtor rural que oferece “tratamento bom para as vaquinhas que produzem pouco e deixa de lado as que estão produzindo muito”. Por óbvio, o Norte e o Nordeste estão representados na fala do governador pelas vaquinhas improdutivas, enquanto o Sul e o Sudeste são representados pelas vaquinhas produtivas. Zema se esforça para ser mais polido que Medioli, mas a mesma essência xenofóbica está ali presente.
A constatação estúpida de que o pacto federativo privilegia o Norte e o Nordeste em detrimento do Sul e Sudeste é um velho clichê da direita brasileira que faz a cabeça de liberais e bolsonaristas sulistas e sudestinos. Qualquer pessoa que more no Sul ou Sudeste já ouviu aquela conversa estúpida de que “nós carregamos o país nas costas para sustentar os nordestinos que vivem encostados no Bolsa Família”. Esse tipo de ignorância não é expressa de forma velada, mas sim abertamente. É conversa de bar. Ignora-se as condições históricas, políticas e sociais que causaram o desnível econômico entre as regiões para dar uma sentença sob a ótica moral do capitalismo: “produzimos mais para o país e, por isso, precisamos estarmos melhor representados politicamente”. Lembra um pouco o meme da Barbie herdeira que grita: “se eu sou rica foi porque eu mereci!”. O consórcio liderado por Zema chega para dar concretude a esse tipo de pensamento burro e nefasto.
Se antes o projeto estava no campo das ideias, agora pretende-se formalizá-lo. O mineiro afirmou na entrevista ao Estadão: “Se tem estados que podem contribuir para esse país dar certo, eu diria que são esses sete Estados aqui [do Sul e Sudeste]. São Estados onde, diferente da grande maioria, há uma proporção muito maior de pessoas trabalhando do que vivendo de auxílio emergencial”.
As críticas às falas de Zema foram rechaçadas por jornalistas e políticos de direita. O Estadão foi duramente criticado nas redes por publicar na manchete que o consórcio proposto pelo governador seria “contra o Nordeste”. O jornalista Mario Sabino, por exemplo, que se destacou no passado por uma defesa canina da Lava Jato, escreveu no Twitter: “Li a entrevista de Romeu Zema ao Estadão. Em NENHUM momento, ele disse que a frente de governadores do Sul e Sudeste era “contra o Nordeste”. Zema não utilizou exatamente essas palavras, mas foi exatamente o que ele quis dizer. A vontade de passar pano para um presidenciável da direita dita civilizada é enorme, mas os fatos são os fatos. Além da alegoria das “vaquinhas”, Zema deixa claro neste outro trecho da entrevista que o consórcio busca o enfrentamento político com os estados do Nordeste. “Também já decidimos que além do protagonismo econômico que temos, porque representamos 70% da economia brasileira, nós queremos – que é o que nunca tivemos – protagonismo político. Outras regiões do Brasil, com Estados muito menores em termos de economia e população, se unem e conseguem votar e aprovar uma série de projetos em Brasília. E nós, que representamos 56% dos brasileiros, mas que sempre ficamos cada um por si, olhando só o seu quintal, perdemos.”. Ou seja, o tal Cossud é, inequivocamente, uma frente de disputa política contra o Nordeste. O Estadão não colocou a frase entre aspas e, portanto, fez bom jornalismo ao dar destaque à única interpretação possível das falas do governador. Mas o bom jornalismo não durou muito. Pouco tempo depois, o jornal sucumbiu à gritaria dos seus colegas direitistas e mudou a manchete. O trecho “contra o Nordeste” foi suprimido, dando lugar a uma manchete, digamos assim, menos bolsonarista.
Zema se esforça para ser mais polido que Medioli, mas a mesma essência xenofóbica está ali presente.
Não por coincidência, a criação da frente política em defesa de maior protagonismo para o Sul e Sudeste foi ovacionada por grupos separatistas. Começou a circular nas redes sociais a imagem de um mapa do Brasil com as palavras “Muro já!”separando o Sul do Norte com a frase: “Força, Zema, apoiamos você.” No Facebook, um grupo separarista de São Paulo postou o link para a entrevista de Zema e comentou: “Já passou da hora de pensarmos na possibilidade de independência dos Estados do Sul e Sudeste. Chega de pagar a conta de Estados que não querem nada a não ser sugar até a última gota de sangue de quem trabalha e produz”. Segundo apuração da BBC, uma série de outros grupos separatistas festejaram a entrevista do governador. É essa tampa de esgoto que foi aberta por Zema. Acreditar que algumas falas dessa entrevista não foi “contra o Nordeste” só cabe em uma das duas gavetas: a da ignorância ou a da má fé.
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Zema não é um dos políticos mais cultos e inteligentes do país, convenhamos. Ele tem grandes dificuldades com matemática, comete erros básicos em português, desconhece uma das mais relevantes escritoras do estado que governa, defendeu o negacionismo durante a pandemia e outros absurdos. É muito pouco para um herdeiro que se formou em administração de empresas e teve todas as oportunidades do mundo para se qualificar. Mesmo com todas essas lacunas intelectuais, o governador mineiro ainda poderia ser um bom representante político. Mas não é o caso. É mais um outsider que caiu de paraquedas na política alavancado pela onda bolsonarista.
Depois de eleito, chafurdou nas profundezas do que há de pior na extrema direita brasileira. Há um esforço por parte da imprensa para desassociar sua imagem a de Bolsonaro, numa tentativa de vendê-lo como um presidenciável da direita limpinha em 2026. Mas será impossível. Nada pode ser mais bolsonarista do que pregar a cisão do país, afrontar o pacto federativo e ignorar a Constituição. Zema, assim como seu conterrâneo Medioli, é um bolsonarista dos mais bolsonaristas.
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