Entrevista de Roberto Mangabeira Unger à Revista Nordeste, 25 de maio de 2020.
Revista: O Senhor defende há muitos anos um caminho para o desenvolvimento do Nordeste como projeto nacional. E foi o Senhor que como Ministro-Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos propôs aos governadores nordestinos fundar o Consórcio Nordeste. Como o Senhor vê o Nordeste de hoje em perspectiva nacional?
Mangabeira Unger: No Nordeste o Brasil tem oportunidade para se reinventar. Vejo o Nordeste como vanguarda de novo projeto nacional de desenvolvimento, não como região-problema. Mas para aproveitar seu potencial de desbravar novo caminho nacional, é preciso enfrentar a realidade sem anestesia.
Revista: Sem anestesia?
Mangabeira Unger: O Nordeste não tem projeto desde a época de Celso Furtado. Duas ilusões preenchem o vazio de projeto. Uma é a ilusão do pobrismo: o compromisso com iniciativas compensatórias que atenuam o sofrimento dos pobres sem lhes abrir alternativas de trabalho e capacitação. Outra é a ilusão do são paulismo: o fascínio por grandes obras, como refinarias e siderurgias à antiga. São iniciativas que remontam ao paradigma da indústria tradicional, chamada de Fordismo industrial, como aquela que se implantou em São Paulo em meados do século passado e que hoje se encontra em apuros e declínio em quase todo o mundo. Tais iniciativas costumam ser concebidas e executadas em regime de enclave: não funcionam como núcleos de um conjunto de empreendimentos capaz de ajudar a soerguer as micro-regiões em volta delas.
Revista: O ponto central não seria obter do governo federal compensações para o atraso relativo?
Mangabeira Unger: Essa é a outra ilusão que preenche o vazio de projeto. É o traço característico do antigo modelo de política regional. O exemplo clássico é a política desenvolvida no pós-Guerra para socorrer o Sul relativamente pobre da Itália. Nunca funcionou em qualquer lugar. As compensações para o atraso relativo podem ser legítimas para complementar, jamais para substituir, a essência da tarefa necessária: assegurar aos nordestinos os meios para criar novas vantagens competitivas a partir das vantagens competitivas estabelecidas. Equipar o dinamismo que viceja, muitas vezes desequipado, e portanto frustrado, em todo o Nordeste.
Revista: Quem fará isso?
Mangabeira Unger: Só o Nordeste pode salvar o Nordeste. Durante toda a vigência da política regional atual, desde a época de Celso Furtado e naquela época inclusive, o Nordeste sempre viveu, e continua a viver, sob tutela e intervenção federais ainda quando os emissários da assombração federal sejam políticos nordestinos. Todas as instituições que formulam a política de desenvolvimento do Nordeste são federais, a começar pela Sudene, pela Codevasp, pelo DNOCS e pelo Banco do Nordeste. O Nordeste, e o Brasil todo, precisam de outro modelo de política regional: para todas as macro e micro regiões do Brasil — não apenas para o Nordeste, que tenha por objetivo não digo a tradução mas a construção do projeto nacional, a partir do potencial de cada região, e que seja definida pelas regiões, em parceria com o governo central, em vez de ser imposto por este àquelas. Tal política não inventará agentes ainda existentes. Começará por trabalhar com os empreendedores, as organizações sociais e os governos que existem.
Revista: E como se organiza, dentro da Federação, esse novo modelo de política regional?
Mangabeira Unger: Por meio da cooperação federativa, sem a qual nenhuma política pública vai para frente no Brasil. Cooperação vertical entre os três níveis da Federação. E cooperação horizontal entre os estados federados e entre os municípios. O instrumento jurídico privilegiado da cooperação federativa horizontal são os consórcios federativos, que sugeri primeiro aos governadores da Amazônia, depois aos do Nordeste, e por fim aos do Centro-Oeste, que, ampliado com participação de Rondônia, do Tocantins e do Maranhão, passou a chamar-se Brasil Central. A fórmula dos consórcios federativos vingou. Numa hora de perplexidade, estagnação econômica e padecimento coletivo, o Brasil profundo das regiões não aguarda passivamente. Procura reagir e se levantar. É um dos acontecimentos mais alvissareiros no país hoje. O problema é o conteúdo da política empreendida pelos entes federados consorciados. Continua relativamente pobre em comparação com o que poderia ser. E o Nordeste, onde tudo começa em matéria de política regional, é o caso exemplar do abismo entre potencial e realidade.
Revista: Qual o eixo da política regional de que o Nordeste precisa?
Mangabeira Unger: É o mesmo do eixo do projeto nacional: empoderamento em vez de cooptação, que tem sido o objetivo maior da política no Brasil. O empoderamento há de ser econômico, educacional e político. E só se efetua por meio de inovações nas instituições e nas práticas. Realocação de dinheiro não basta.
Revista: E há base social para sustentar esse impulso transformador? Não seria voluntarismo utópico?
Mangabeira Unger: Qualquer grande projeto transformador constrói sua própria base social. Mas essa construção precisa encontrar pontos de partida na sociedade de hoje. De um lado, os pontos de partida são dois movimentos conjugados que se disseminam por todo o Nordeste: uma vitalidade empreendedora assombrosa, porém desequipada, e uma inventividade tecnológica popular que, com ainda com educação técnica relativamente rudimentar, começa a alçar voo. Exemplo do primeiro movimento é o complexo de confecções na área de Toritama e Caruaru no interior do Pernambuco– um turbilhão de atividade empreendedora operado por empresas médias associadas a mini-empreendimentos — os “fabricos” que empregam práticas e tecnologias de muitos estágios diferentes da evolução industrial do Ocidente nos últimos duzentos anos. Exemplo do segundo movimento é a tecnologia eficiente e autóctone, de fabricação de mel, que encontrei em Picos no interior do Piauí, pronta para rivalizar com as tecnologias do setor em qualquer lugar no mundo.
Revista: Mas em que estratos da população nordestina está hoje a base maior dessas duas forças?
Mangabeira Unger: Nem nos endinheirados, nem nos mais pobres. O foco dessas duas forças está nos emergentes, agente social decisivo no Brasil de hoje, presente em massa no Nordeste. Não é apenas a pequena burguesia empreendedora. É também um grupo ainda mais importante — trabalhadores ainda pobres que trabalham incessantemente e abraçam cultura de auto-ajuda e iniciativa. São esses que eu chamei os batalhadores. No Nordeste surgem aos milhões inclusive e sobretudo no sertão.
Revista: No sertão? Qual o significado do sertão nordestino nessa mudança?
Mangabeira Unger: Assim como não há solução para o Brasil sem o Nordeste, não solução para o Nordeste sem o sertão. É lá que mora metade dos nordestinos, em 80% do território da região — no único semi-árido densamente povoado do planeta. E é lá que se apresentam, em sua forma mais concentrada, tanto os problemas como o potencial do Nordeste. O Brasil não conhece o sertão e muitos nordestinos, do litoral ou do cerrado, não o compreendem. É o palco de uma experiência histórica singular no Brasil e rara no mundo: lá se configurou, pelo menos desde o século 19, uma sociedade de homens e mulheres pobres, porém livres, e imunes às mazelas da escravatura. E continua a ser até hoje fonte perpétua de dignidade, austeridade, independência e coragem — a grandeza cultuada sem narcisismo ou megalomania. Esse é o ambiente espiritual em que se pode conceber e executar um projeto que tenha seu norte no engrandecimento das pessoas comuns.
Revista: Como se organiza na economia nordestina um desenvolvimento orientado nesse sentido?
Mangabeira Unger: É preciso distinguir suas expressões na indústria, nos serviços e na agricultura, embora as diferenças sejam relativas. Há poderosas analogias entre as repostas exigidas por cada um desses setores.
Revista: Na indústria?
Mangabeira Unger: O primeiro passo é a organização do extensionismo industrial, por analogia à extensão agrícola, que criou, desde o século 19, em países como os Estados Unidos, uma agricultura de escala familiar com atributos empresariais — a mais eficiente do mundo até aquela época. Trata-se de abrir em favor de médias e pequenas empresas, capazes de aproveitar esse apoio, o acesso a tecnologias, práticos e conhecimentos avançados lá embaixo, na ponta. O Estado brasileiro é um dos únicos do mundo que tem os instrumentos necessários para isso — Senai, Sebrae, Embrapa, bancos públicos de desenvolvimento. O que não tem é o projeto. Não proponho que o Nordeste reproduza em nível regional essas organizações já existentes. O que proponho é que os governos dos estados nordestinos criem, no plano regional, o projeto que falta ao país e ao governo federal. Uma Sudene reconstruída, irmanada com uma Agência de Empreendedorismo, estabelecida pelos governos da região, coordenaria as ações — inclusive as ações regionais daqueles instrumentos poderosos de política industrial que estão sob o controle do governo federal.
Revista: E qual o caminho de longo prazo que se pretende abrir com essas iniciativas?
Mangabeira Unger: É colocar o Nordeste na linha de frente da solução de um dilema novo a respeito do crescimento que o mundo começa a enfrentar sem haver ainda encontrado como resolvê-lo. O atalho ao crescimento econômica recomendado pela economia clássica do desenvolvimento era a indústria convencional, como a que se instaurou no Sudeste do Brasil, e sobretudo em São Paulo, em meados do século passado. Deixou de ser vanguarda. É resquício da vanguarda anterior ou satélite da nova vanguarda da economia do conhecimento — densa em tecnologia e conhecimento e dedicada a inovação permanente. A alternativa seria forma socialmente inclusiva dessa nova vanguarda. Não existe: a economia do conhecimento surge no mundo apenas na forma de franjas que excluem a grande maioria das empresas e dos trabalhadores. Está posto o dilema: o caminho tradicional do desenvolvimento deixou de funcionar. A alternativa parece inacessível.
A solução não é tentar imitar no Nordeste o Vale do Silício. É organizar escalda de produtividade, de base ampla, que aproveite a desmesurada fecundidade empreendedora e cultural do Nordeste. O horizonte é construir no Nordeste e todo o Brasil forma inclusiva da economia do conhecimento, parte por parte e passo por passo.
Revista: E como fica a tradição dos grandes projetos industriais — que o Senhor chamou de são paulismo?
Mangabeira Unger: Tais projetos de grande escala continuam a ser úteis e até necessários desde que preenchidos três requisitos, tipicamente desatendidos. O primeiro é que estejam no rumo da travessia do Fordismo industrial para a economia do conhecimento. O segundo é que não se cinjam a uma lógica de enclave e contribuam à formação de complexos e cadeias produtivos dentro dessa escalada de produtiva. O terceiro é que sirvam ao aproveitamento de uma vantagem comparativa que não seja apenas a disponibilidade de trabalho barato. Sustentei em toda a parte a tese de que o Nordeste pode ser a nossa China — menos a China de agora do que a China que deslanchou em décadas passadas — tanto num bom sentido como num mau sentido. Num mau sentido, se for apenas um manancial de trabalho barato. Num bom sentido, se virar grande fábrica de engenho e inovação.
Revista: E na economia de serviços, que forma adquire esse projeto?
Mangabeira Unger: A mesma lógica de qualificação precisa ser adaptada aos prestadores de serviços. O maior desafio está na situação dos prestadores autônomo e semi-autônomos: alguns ainda na informalidade, outros na precarização dentro da economia formal. Não há dinâmica de produtividade que se sustente num quadro de insegurança econômica do trabalhador, aviltamento salarial e capacitação técnica precária.
A chave está em desenvolver o extensionismo para o agente autônomo ou semi-autônomo, não apenas para a empresa. O lugar para iniciar a obra é a camada média do mercado de trabalho — justamente a parte mais prejudicada nas mudanças sofridas pelas economias contemporâneos. Organizar mecanismos de apoio e qualificação desses profissionais ou técnicos, como, por exemplo, reparadores de máquinas ou enfermeiras, para transformá-los em artesãos tecnologicamente equipados. Não pode ser por mãos de burocracia estatal centralizada. Tem que ser por meio de centros de apoio que funcionem de maneira descentralizada, e de engajamento do sistema S, com a participação de cadeias de empresas e de entidades públicas que atuem em rede com grande margem para experimentar.
Revista: E a reorientação da agricultura?
Mangabeira Unger: A agricultura não constitui exceção à mesma maneira de pensar e de fazer. Pelo contrário, é na agricultura que historicamente se iniciam muitas das práticas mais inovadoras. Temos tarefa clara no Brasil: ultrapassar o modelo agropecuário atual, marcado pelo predomínio da monocultura, sobretudo da suja, e da pecuária extensiva, com baixo teor de industrialização dos produtos agropecuários. O cerrado nordestino, sobretudo no oeste da Bahia e no sul do Piauí, exemplifica a forma mais atual desse paradigma: muito produtiva, vista a curto prazo e nos ganhos econômicos que propicia, porém incapaz de apontar rumo para o futuro da região e do país.
A atividade econômica predominante no Brasil atual continua a ser a mais atrasada: a pecuária extensiva. Por conta dela grande parte de nosso território nacional hoje é pastagem degradada pelos efeitos cumulativos da pecuária extensiva. Ao ser recuperada — a ciência da recuperação está dominada e o custo é baixo, podemos transformar as áreas degradadas no palco físico de novo paradigma agropecuário, orientado também na direção da economia do conhecimento: diversificação de lavouras perenes, intensificação da pecuária, manejo florestal sustentável e industrialização dos produtos agropecuários. O Nordeste pode dar o sinal para esse grande projeto nacional. Seus corolários sociais são atenuar o contraste entre a cidade e o campo e desenvolver classe média rural forte.
Revista: Que particularidades o Nordeste acrescenta a esse projeto nacional?
Mangabeira Unger: Temos que distinguir a agricultura do cerrado, a agricultura irrigada e a agricultura de sequeiro. Na agricultura de cerrado, vale o caminho largo e exemplar que esbocei. Na agricultura irrigada, ao contrário do que tradicionalmente se supõe, o problema central não é a condução física da água, relativamente fácil de assegurar. É o modelo institucional para organizar a colaboração entre os produtores rurais, entre os agentes privados e públicos e entre as instâncias e os entes da Federação. Na agricultura de sequeiro, tudo começa de trás para frente na comercialização dos produtos (com o redirecionamento, inclusive, dos instrumentos públicos de comercialização, como as Conabs). E tanto na agricultura irrigada como a agricultura, dada a pulverização de propriedades, é preciso reorganizar os mercados quebrando ou constrangendo os cartéis de intermediários para impedir que os atravessadores fiquem com a parte de leão dos ganhos. Só a agricultura do cerrado sofre menos desse problema, porque é dominada pelo agronegócio de grande escala, com poder de barganha para lidar com os oligopólios e oligopsônios.
Revista: O Senhor não tocou na estrutura de transporte regional, tão importante para os nordestinos e seus governos.
Mangabeira Unger: Importante, porém acessório ao projeto produtivista que descrevi. A unificação física do Nordeste ajuda a criar base para seu soerguimento produtivo. Por si só, porém, não resolve. Nessa unificação os pontos capitais são a integração de bacias hidrográficas, sempre sonhada mas nunca completada, a finalização do eixo ferroviário transnordestino, a navegação de cabotagem, a aviação regional e um grande projeto de estradas vicinais. financiado pelos fundos legais e constitucionais disponíveis aos governos nordestinos, porém direcionado e administrado pelos consórcios de governos estaduais e municipais. É intolerável que até hoje muitos municípios nordestinos continuem quase completamente isolados.
Revista: Uma agenda da envergadura dessa que o Senhor propôs até agora não exige mudança radical no ensino oferecido aos nordestinos?
Mangabeira Unger: Sem dúvida. O Nordeste tem tudo para liderar a transformação do ensino brasileiro. O maior gargalo, e o ponto estratégico para iniciar a mudança necessária, é o ensino médio. Vejo dois caminhos complementares — um curto e outro longo. O caminho curto é aproveitar a presença dos Institutos Federais de Ensino Tecnológico, que já vem surtindo efeito fecundo em muitos pontos do Nordeste. Os governos estaduais podem criar, sob seus auspícios e em colaboração com o Senai e o Senac, instituições similares. O objetivo é criar tanto um ensino de orientação analítica e capacitadora como um ensino técnico que comungue do mesmo espírito sem perder sua orientação prática. Esse ensino técnico daria ênfase às capacitações conceituais e operacionais exigidas pelo manejo das máquinas ajustáveis e numericamente controladas e pelas práticas caraterísticas a economia do conhecimento. Tais práticas aproximam a atividade produtiva do experimentalismo científico. Não se rendem, porém, aos preconceitos que ameaçam transformar o ensino técnico numa contrafação livresca do tradicional ensino geral.
Revista: E o caminho longo rumo a essa transformação do ensino?
Mangabeira Unger: É começar a mudar a natureza do ensino a partir das escolas estaduais de ensino médio – onde estuda a grande maioria dos alunos no curso secundário4. Trata-se de inaugurar outra maneira de aprender e de ensinar: que sobreponha capacitações analíticas a decoreba, aprofundamento seletivo a enciclopedismo raso, trabalho de equipe a justaposição de autoritarismo e individualismo na sala de aula, e apresentação do conhecimento estabelecido por meio de pontos de vista contrastantes aos dogmas da cultura universitária. Não há lugar no Brasil melhor do que o Nordeste para cumprir a tarefa. A Base Nacional Curricular Comum — obra retrógrada contra a qual lutei — dá aos estados a margem necessária para avançar. Seria a continuação da obra que nosso maior reformador do ensino, Anísio Teixeira, discípulo do filósofo pragmatista, John Dewey, iniciou como Secretário de Educação do governo de meu avô, Otávio Mangabeira, em 1947, na Bahia. Trata-se de transformar nossa espontaneidade inculta em flexibilidade preparada em vez de enfiar nossos jovens na camisa-de-força de um ensino que representa a negação de nós mesmos.
Revista: Quais as condições práticas para a viabilização de uma mudança tão ambicioisa
Mangabeira Unger: É a interação entre três fatores: a consolidação de uma vanguarda pedagógica de centenas de professores e diretores de escola, inspirada pelos experimentos educacionais mais promissores da região e do país e responsável por produzir os materiais de ensino necessários; a consolidação, a nível estadual e regional de uma carreira de professor capaz de atrair os melhores talentos e beneficiária de licenças periódicas do magistério para requalificação; e a parceria com as universidades, tanto federais como privadas, para adaptar as licenciaturas a essa orientação. Desejável mesmo é que os próprios governos estaduais pudessem trabalhar pela instauração de equivalentes às antigas escolas normais, criando base para a formação de professorado com as capacitações exigidas por esses avanços.
Revista: E quais são as implicações dessa agenda nordestina para a reorganização da política e da administração pública?
Mangabeira Unger: É uma insensatez priorizar, na primeira etapa, o enriquecimento da democracia representativa por traços de democracia direta ou participativa. Numa sociedade marcada por vastas desigualdades como a nossa, com o povo atormentado por dificuldades prementes na vida quotidiana, a fórmula dos conselhos populares acaba significando na prática a ditadura dos aparatos partidários e dos falastrões — dois grupos quase indistinguíveis.
Revista: O que fazer então?
Mangabeira Unger: Não temos ainda no Brasil, nem no plano federal, nem no estadual, o Estado capaz de fazer tudo isso que proponho. Esse Estado tem que ser construído no meio do caminho. As inovações mais profundas dependem da posse do poder central. Mas os estados têm caminho mesmo dentro das regras nacionais vigentes. Aqui, também, o Nordeste precisa e pode ousar.
Revista: Como?
Mangabeira Unger: Por meio da promoção de três agendas. A primeira é a obra inacabada do século 19 em matéria de gestão pública, a construção de carreiras de estado. A segunda é a agenda do século 20, de eficiência e transparência. com mecanismos de cobrança dentro do Estado e fora dele — pela sociedade. A terceira é a agenda do experimentalismo administrativo, que ganhará relevo no curso do século 21. Não é uma planilha ou um sistema que apresento; é um caminho. E esse caminho tem que ser descoberto coletivamente ainda que tenhamos de antecipá-lo provisoriamente como faço aqui em nossa conversa. Os dois maiores instrumentos da experimentação nas políticas publicas são a cooperação federativa — vertical e horizontal — e o engajamento da sociedade civil independente na provisão dos serviços públicos.
Revista: O que significa esse engajamento?
Mangabeira Unger: Os governos, a começar pelo governo federal, devem continuar a ser responsáveis pela oferta universal de um mínimo de serviços públicos. Não nos devemos, porém, contentar com o que se poderia chamar o Fordismo administrativo, por analogia ao Fordismo industrial: a disponibilização de serviços padronizados de baixa qualidade pela burocracia do Estado. A privatização de serviços em favor de empresas com objetivo de lucro não é a solução. A alternativa seria o Estado engajar, preparar, financiar, coordenar e monitorar a sociedade civil independente, atuando por exemplo por meio das Organizações Sociais, com estatuto legal próprio, para trabalhar como parceira dele Estado na provisão pluralista e experimental de serviços públicos mais inovadores e complexos. É a melhor maneira de qualificar tais serviços.
Revista: E como fica a política social nesse quadro?
Mangabeira Unger: Façamos distinção entre os instrumentos administrativos e as tarefas de fundo da política social. Proponho que os Estados nordestinos organizem, em associação com os municípios, um corpo regional de agentes comunitários de política social, por analogia aos agentes comunitários de saúde, para coordenar em cada município e cada bairro ou vizinhança o acesso a todos os serviços públicos — federais, estaduais e municipais, trabalhar nessa coordenação com as organizações comunitárias existentes e estimular a construção de novas. Organização é poder. E o melhor lugar para começar é o sertão nordestino: a sociedade do sertão, ao contrário da sociedade das cidades litorâneas, já goza de densidade associativa — o que os sociólogos chamam capital social. Representa, portanto, terreno fértil para essa iniciativa.
Revista: E as tarefas de fundo na política social, dada a dimensão da pobreza no Nordeste?
Mangabeira Unger: Temos que superar confusão perigosa na maneira de entender e construir a política social — confusão agravada pela discussão convencional da ”porta de saída” dos programas de transferência, como a Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, tão importantes no Nordeste. É preciso distinguir duas tarefas. Uma tarefa é auxiliar a família pobre, muitas vezes conduzida por uma mãe que luta sozinha para trabalhar e cuidar dos filhos ao mesmo tempo — geralmente na informalidade e com educação mínima. Ali a tarefa é resgatar e proteger mãe e filhos até que possam ficar de pé, sempre que possível com o apoio de organizações comunitárias. A outra tarefa é qualificar os batalhadores — ainda pobres, mas participantes ativos do mercado de trabalho e sedentos de qualificação. Para eles o que vale é aquele extensionismo individualizado — direcionado sobretudo aos autônomos e semi-autônomos — que descrevi em momento anterior.
Revista. Haja ambição para tudo isso. Qual a base social e espiritual para tudo isso no Nordeste de hoje?
Mangabeira Unger: A base social é a construção de uma grande coalização dos interesses do trabalho e da produção. Essa base tem de ir desde o pobre e o batalhador, com os olhos vidrados na pequena burguesia empreendedora, aos empresários médios e os profissionais liberais que querem construir no Nordeste economia e cultura que não sejam periferia ou satélite da economia e da cultura do Sudeste. É na maneira de alcançar esse objetivo que o Nordeste pode ajudar a apontar caminho para o Brasil
Revista. E a base espiritual?
Mangabeira Unger: É a ambição da grandeza, ambição que o Nordeste nunca perdeu. Não quero um Nordeste choramingando, com o pires na mão. Quero um Nordeste que descobre e constrói sua vocação de rebeldia. Para poder dizer sim a essa ambição engrandecedora, o Nordeste precisa começar por dizer não aos descaminhos do Brasil contemporâneo. Ao se rebelar contra ideias, políticas e instituições que empobrecem, apequenam e humilham os nordestinos, o Nordeste falará pelo Brasil.