Uma área de quase 6 mil quilômetros quadrados, do norte da Bahia até a fronteira sul de Pernambuco, foi rebaixada do clima semiárido para o árido. A confirmação consta de um levantamento publicado recentemente pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais, a partir da análise do índice de aridez e de precipitação de chuvas em todo o Brasil. Segundo o estudo, os climas semiúmido seco e semiárido extrapolam os limites nordestinos e de algumas regiões de Minas Gerais e Espírito Santo, e alcança outras áreas, principalmente o norte do Rio de Janeiro e o Pantanal, em Mato Grosso do Sul. O aumento da temperatura só não afetou ainda os estados do Sul do País e os litorais carioca e paulista.
“As áreas semiáridas estão em expansão, mas ainda se concentram no Nordeste. Mas o subúmido seco, que ficava ali normalmente na borda do semiárido, a gente percebe no Rio e no Pantanal”, afirma Javier Tomasella, engenheiro de recursos hídricos do Inpe e um dos autores da pesquisa. “Se olharmos para o Brasil como um todo, vemos que o clima em outras regiões tem mudado, para uma dimensão mais quente, mais seco, não só no semiárido”, completa Ana Paula Cunha, pesquisadora do Cemaden e outra integrante da equipe responsável pelo estudo. O aumento da temperatura faz a atmosfera absorver mais água e o clima torna-se mais seco. Para identificar a mudança, o Inpe e o Cemaden utilizaram dados dos últimos 60 anos e compararam o índice de aridez em blocos de 30 em 30 anos, para estabelecer a razão entre a precipitação e a evapotranspiração, a combinação da evaporação da água no solo e da transpiração pelas plantas. “É como se a gente pegasse tudo que entra de água no sistema e dividisse por tudo que sai”, explica Tomasella.
Pela Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação, o índice de aridez entre 0,05 e 0,2 é considerado clima árido, estágio identificado na Bahia, que atingiu a marca de 0,18. A variação de 0,2 a 0,5 é característica do semiárido, comum no bioma da caatinga nordestina e de parte do Espírito Santo e Minas Gerais. De 0,5 a 0,65, é subúmido seco, área antes restrita ao entorno do semiárido, que se expandiu para outras regiões do País. Ao contrário do que muita gente pensa, mesmo com o aumento da temperatura, no Brasil não há nenhuma área com características de deserto, cujo clima é hiperárido e com índice de aridez inferior a 0,05. A confusão acontece porque há uma interpretação equivocada de que uma região em processo de desertificação apresenta características de deserto. “São coisas distintas. Quando a gente fala em degradação de áreas semiáridas, a gente está falando de desertificação. Deserto, propriamente dito, é o clima hiperárido e não existe no Brasil”, diz Cunha. “Essa aceleração da aridização no País, a expansão da área subúmida seca para fora da Região Nordeste, o aumento do semiárido e o aparecimento do clima árido na Bahia estão muito mais relacionados ao aumento de temperatura, que cresce desde a década de 1960. Ou seja, estão relacionados às mudanças climáticas antropogênicas. E as projeções são de que a temperatura vai continuar subindo.”
O Ministério do Meio Ambiente quer captar recursos internacionais para combater o fenômeno
Doutor em Meteorologia, o cientista Humberto Barbosa, coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites da Universidade Federal de Alagoas, faz um acompanhamento em tempo real das condições climáticas no Nordeste. Além da aridez identificada na Bahia, as pesquisas de Barbosa apontam outras regiões com características de desertificação, uma vez que considera fatores além do clima. “É preciso envolver três componentes para dizer o que acontece nas terras secas. Tenho de olhar o clima, a cobertura vegetal e o balanço de energia na atmosfera para entender que processos causam essa dinâmica, essa mudança rápida de temperatura”, descreve o meteorologista, ao citar a região do Cariri paraibano como um enclave em processo de desertificação.
Estudo realizado pelos Tribunais de Contas de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e Sergipe identificou uma extensa área de degradação ambiental no semiárido nordestino, aspecto a se somar aos dados dos pesquisadores. “Em alguns municípios, 80% dos territórios estão comprometidos e correm o risco de desertificação. Há, inclusive, muita área que não tem cobertura vegetal e está abandonada. Muitos municípios são pobres e deficientes tecnicamente. Existe uma falta de coordenação na implementação de uma política pública eficaz”, diz Paulo Henrique Cavalcanti, auditor do TCE de Pernambuco. “O problema da desertificação não tem fronteira, tem coisa ali que vai contaminando, vai se alastrando. O governo federal tem de fazer a coordenação geral, por meio de uma política nacional.”
O Ministério do Meio Ambiente deve apresentar, até o fim do ano, o segundo Plano de Ação Brasileira de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca, com políticas públicas voltadas para minimizar o problema. Em caráter mais imediato, o ministério finaliza um programa de captação de recursos que deve ser apresentado na próxima Conferência do Clima, em dezembro, na Arábia Saudita. “Corremos contra o tempo para esse programa ser um dos principais instrumentos que vamos levar à COP-16, para que a gente possa dialogar com os fundos globais de mudança do clima e captar recursos para implementar políticas públicas de forma mais robusta, com ação de impacto concreto”, conta Alexandre Pires, diretor de combate à desertificação da pasta.
Estado mais afetado pela aridez, a Bahia desenvolve o Plano Estadual de Ação e Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca e o Plano Estadual de Convivência com o Semiárido. “Temos ações transversais, com políticas públicas voltadas para as macrorregiões que vão desde monitoramento das barragens até a recuperação de mata ciliar e recursos hídricos, replantio de mudas de árvore e instalação de programas de dessalinização de água”, descreve Eduardo Martins Sodré, secretário estadual do Meio Ambiente. •
Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O mar vai virar sertão’