Com o impulso das mudanças nos programas de transferência pré-eleição de 2022 e no início de 2023, a extrema pobreza no Brasil reduziu pela metade no pós-pandemia: caiu de 19,2 milhões em 2021 para 9,5 milhões em 2023. Dos brasileiros que deixaram a extrema pobreza, metade vivia no Nordeste. A região ainda mantém, no entanto, 5,2 milhões com rendimento per capita de até R$ 209 por mês, quase 10% de sua população, mostra estudo do Centro de Estudos para o Desenvolvimento do Nordeste, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre).
Além do Bolsa Família, estudiosos citam também como fatores que contribuem para esse movimento a melhoria do mercado de trabalho, chuvas mais regulares nos últimos anos e o reajuste real do salário mínimo – que beneficia trabalhadores e beneficiários do INSS, como quem recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC), programa voltado para idosos e pessoas com deficiência.
O estudo dos pesquisadores do FGV Ibre mostra ainda ritmos de queda diferentes entre os nove Estados do Nordeste e contingentes de pobres e extremamente pobres bem distantes, mas que muitas vezes passam despercebidos. Especialistas afirmam que em geral a região é vista como um bloco único, mas que as heterogeneidades entre os Estados demandam uma agenda de políticas públicas adequada para as realidades diversas. Além disso, defendem que é preciso ampliar o trabalho de avaliação das políticas voltadas para a região, diante de décadas de programas com resultados lentos na redução da miséria.
“Os números mostram que os programas de transferência de renda têm impacto forte na pobreza e na extrema pobreza. Houve uma redução significativa no Nordeste, mas ainda é a região que tem mais pobres e extremamente pobres”, afirma o coordenador do Centro de Estudos para o Desenvolvimento do Nordeste do FGV Ibre e professor de Economia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Flávio Ataliba Barreto.
Para avançar na política de redução de pobreza, defende que é preciso considerar as especificidades dos nove Estados nordestinos. “O Brasil é um país muito desigual regionalmente, só que também há diversidade dentro do próprio Nordeste. Pensar apenas a região é algo abstrato, é preciso foco nos diferentes Estados nordestinos”, diz ele, um dos autores do estudo, ao lado dos pesquisadores João Mário Santos de França, Vitor Hugo Miro e Arnaldo Santos.
No trabalho, extremamente pobres são aquelas que vivem com renda domiciliar per capita de até R$ 209 por mês. Isso significa, por exemplo, que uma família com pai, mãe e dois filhos tenha R$ 836 por mês para arcar com despesas como moradia, alimentação, energia elétrica, transporte e remédios, por exemplo. O grupo dos pobres reúne quem tem renda domiciliar per capita de até R$ 667 por mês. O estudo calcula a distribuição da pobreza no país a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Pelo Censo Demográfico 2022, a população nordestina era de 54,6 milhões de pessoas, ou 26,9% dos 203,08 milhões dos habitantes no país. Essa fatia, no entanto, é superior quando se considera os extremamente pobres (5,2 milhões de pessoas, ou 55,2% do grupo no país) e os pobres (27,54 milhões, ou 45,6% dos pobres no país).
Por outro lado, a participação do Nordeste no Produto Interno Bruto (PIB) nacional é muito inferior à representatividade de sua população. Pelas informações mais recentes do IBGE, referentes ao ano de 2021, o Nordeste respondia por 13,8% do PIB brasileiro. Entre 2002 e 2021, um intervalo de 20 anos, essa fatia oscilou apenas entre 12,84% em 2023 e 14,48% em 2017.
Em termos absolutos, a Bahia é o Estado nordestino com o maior contingente populacional na extrema pobreza: 1,32 milhão ou 9,3% da população, considerando os dados do estudo e do Censo 2022. A maior incidência da extrema pobreza, no entanto, aparece no Maranhão, onde quase 13% estão nesta situação, ou 879,3 mil pessoas. Na passagem entre 2021 e 2023, o ritmo de redução entre extrema pobreza entre 40,4% no Ceará e 56,9% no Rio Grande do Norte.
“A situação do Maranhão é a mais grave. É um Estado com alta informalidade no mercado de trabalho e uma parcela grande de sua população sem instrução. O período pós-pandemia registrou redução da pobreza e da extrema pobreza”, afirma Andreia Andrade dos Santos, professora da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc, localizada em Ilhéus, na Bahia).
A Bahia também é o Estado com maior parcela da economia brasileira entre os Estados nordestinos, de 3,9%, seguida por Pernambuco (2,5%) e Ceará (2,2%). Na outra ponta, os Estados com as menores economias na região são Sergipe (0,6%) e Piauí (0,7%).
“Não existe uma única razão para a redução da pobreza no pós-pandemia. Temos muitos fatores que contribuem para essa realidade”, reforça o professor de Economia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Cícero Péricles Carvalho, especialista na economia de Alagoas e do Nordeste, com foco na questão da pobreza.
Não existe uma única razão para a redução da pobreza no pós-pandemia; temos muitos fatores que contribuem”
— Cícero Péricles Carvalho
Na sua avaliação, há uma combinação de aumento de investimentos públicos e privados – tanto de empresas nacionais quanto de grupos locais -, chuvas regulares na região do semiárido desde 2016; as políticas públicas sociais, como Bolsa Família e BPC; o reajuste real do salário mínimo; o avanço do mercado formal de trabalho e o crescimento do turismo.
Dos cerca de 1.800 municípios nordestinos, quase 1.500 estão no semiárido, explica Carvalho. Após um período de secas intensas entre 2012 e 2016, o período desde então tem sido de chuvas regulares, com impacto relevante na agricultura, seja a familiar ou a de grande porte, que tem se expandido na Matopiba, região que compreende os Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e tem se destacado como fronteira agrícola.
“As políticas públicas têm capilaridade e ampliam o consumo. Esse impacto no consumo dinamiza as indústrias. Mas a participação da indústria é pequena nos Estados do Nordeste, então quando há aumento de renda há um certo ‘vazamento de crédito’”, pondera Carvalho.
Ao analisar a situação da pobreza nos nove Estados Nordestinos, Flávio Ataliba Barreto lembra que o perfil da economia de cada um deles é diferente, com motores distintos para a expansão do Produto Interno Bruto (PIB), o que pode ajudar a explicar o ritmo de redução da pobreza. A despeito dessas disparidades, acredita que há espaço para uma troca maior de experiências e também de avaliação de políticas públicas.
“Em um momento de restrição de recursos, é importante avaliar as políticas públicas, entender a razão de alguns Estados terem mais sucesso que outros. E por que não se consegue transbordar essas políticas e tecnologias?”, destaca.
Essa avaliação de políticas, afirma a professora da Uesc, permite também uma adequação das iniciativas para as diferentes realidades. “De fato, são Estados diferentes. Não há fórmula mágica [para redução da pobreza]”, nota dos Santos.
O professor da Ufal cita o conceito de “mosaico do Nordeste”, do escritor Manuel Correia de Andrade, autor de “A terra e o homem do Nordeste”, para citar as disparidades entre os Estados e as diferentes regiões do Nordeste, com o litoral mais rico e a pobreza maior à medida que se avança para o interior. Na sua análise, existe hoje uma espécie de “colchão social”, com os avanços dos últimos 25 a 30 anos, mas o ritmo das melhorias é menor do que seria de se esperar diante das instituições voltadas para o desenvolvimento e a redução da pobreza no Nordeste.
“Temos um conjunto grande de órgãos voltados apenas para o Nordeste. Não é por falta de instrumentos que o Nordeste sofre tanto, é porque os instrumentos foram capturados por interesses políticos e não desenvolvimentistas”, diz Carvalho.