A comunidade indígena Warao, que tem origem venezuelana e vive no Brasil desde 2014, tem enfrentado uma série de desafios desde a pandemia de covid-19. Em meio a dificuldades como a precariedade dos abrigos, a falta de alimentos e a proibição de “permanecerem” nas ruas, os Warao sofrem também com a dificuldade de acesso à Justiça sem intermediários, motivada pela dificuldade linguística, conforme relatou uma liderança indígena. Além disso, após o período mais crítico da pandemia, a comunidade tem sido duramente afetada por mortes recorrentes de crianças, jovens, adultos e idosos na Paraíba, agravando ainda mais a situação de vulnerabilidade.
Diante dessa situação e buscando construir sua autonomia étnica e, assim, um espaço para poder se expressar do seu modo sem a interferência nem intermédio de agentes públicos, como atores sociais, os Warao fundaram, no dia 9 de setembro de 2024, Associação Dariamo Warao da Paraíba, a primeira associação indígena Warao do Nordeste, sendo uma das primeiras do Brasil. A entidade, concebida por indígenas Warao que residem na Paraíba, surge como uma tentativa de garantir a visibilidade e a representatividade da comunidade no cenário político e social brasileiro.
Segundo o antropólogo Jamerson Lucena, membro da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), os primeiros grupos Warao chegaram à cidade de João Pessoa em agosto de 2019, desde então, enfrentaram inúmeras dificuldades até o final daquele ano. Após denúncias apresentadas ao Ministério Público Federal (MPF), um grupo de atores, incluindo representantes dos governos estadual e municipal, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Pastoral dos Migrantes, se reuniu em 2020 para buscar uma solução emergencial para a situação de extrema vulnerabilidade em que viviam os indígenas.
Os Warao são originários da Venezuela, contudo, vivem no Brasil desde os anos de 2014, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Em março de 2020, o governo estadual firmou um convênio com a Ação Social Arquidiocesana (ASA), instituição religiosa vinculada à Arquidiocese da Paraíba, para prestar serviços aos indígenas. No entanto, esse suporte foi interrompido após a entidade ser envolvida em escândalos de fraude envolvendo o padre Egídio de Carvalho, seu coordenador, o que comprometeu o auxílio, já precarizado, que vinha sendo oferecido à comunidade Warao.
Desde a chegada dos Warao no Brasil, esses indígenas têm enfrentado inúmeras investidas contra sua existência. Na Paraíba, os conflitos também envolvem as regras rígidas de abrigamento, que incluem punições por não cumprimento, somam-se à insatisfação com a distribuição de alimentos e pouca assistência de saúde e às narrativas preconceituosas que culpabilizam os Warao por problemas como a escassez de alimentos, a precariedade da estrutura física, como problemas elétricos, hidráulicos, além dos problemas de saúde, especialmente envolvendo as crianças e, desse modo, vivem sob um regime de tutela.
A saúde também é uma área crítica. De acordo com o relatório do Ministério Público (MPF) da Paraíba de 2022, em que demanda que a Justiça Federal determine à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e ao Distrito Especial de Saúde Indígena Potiguara (Dsei) que realize o atendimento de saúde às famílias indígenas venezuelanas da etnia Warao refugiadas na Paraíba, o cenário permanece um grande desafio.
Nos últimos quatro anos, o número de mortes, especialmente por causas evitáveis, tem crescido. Já foram registradas 16 mortes, incluindo aquelas por causas evitáveis, inevitáveis e de origem desconhecida, afetando idosos, adultos, jovens e crianças. Entre essas vítimas estão crianças nascidas em território nacional, que são brasileiras e paraibanas de etnia Warao, como a bebê Warao de um ano de idade, falecida em 11 de outubro de 2023 em João Pessoa com desnutrição avançada, fato noticiado, à época, por este jornal. E no dia 7 de setembro deste ano faleceu no hospital infantil Arlinda Marques a bebê chamada Berenicia Perez de apenas três meses com histórico de subnutrição.
Além disso, enquanto permanecem na Paraíba, os indígenas Warao enfrentam um processo de silenciamento, frequentemente atribuído à barreira linguística, já que muitos ainda não dominam a língua portuguesa. Por conta disso, suas demandas e reivindicações têm sido, por muito tempo, mediadas por outras pessoas. O que demonstra a necessidade por intérpretes tradutores, tanto de espanhol quanto da língua materna chamada Warao.
Contudo, alguns avanços começaram a surgir, como a inserção das crianças no sistema de educação municipal e a criação de uma equipe técnica do governo estadual para dar assistência aos indígenas, além do surgimento de uma equipe de saúde municipal para atendê-los. No entanto, de acordo com a liderança e presidente da Associação, Ramón Quiñonez, eles sempre buscaram autonomia e que tivessem participação efetiva nos projetos e ações: “Nós queremos criar nossas assembleias, nossos conselhos… conselho indígena de anciãos, de mulheres, sobre saúde Warao, sobre educação de crianças, sobre artesanatos, sobre nossos direitos.” Os Warao são sujeitos de direito como indígenas e, dependendo do status legal acionado, como refugiados e migrantes.
Ramón Quiñonez ressalta: “Precisamos despertar e, através da nossa própria instituição, a Associação Dariamo Warao da Paraíba, queremos garantir o nosso modo de trabalhar para progredir. Somos seres humanos, com nossa própria capacidade de pensar e atuar de acordo com o nosso conhecimento e forma de trabalho Warao”.
Nesse contexto, a criação da associação indígena não será apenas um instrumento de construção de autonomia, mas também de fiscalização dos recursos destinados a garantir os direitos da comunidade. Segundo Jamerson Lunena, “a associação permitirá que os Warao tenham assento em conselhos importantes, como o Conselho Municipal de Saúde, e em outros espaços onde suas vozes poderão ser ouvidas”. Assim, mais do que um símbolo de resistência, a associação indígena surge como um instrumento de luta pela defesa e promoção dos direitos étnicos dos Warao, representando um passo crucial na garantia de sua autonomia e dignidade no Brasil. Os Warao esperam fortalecer sua luta por melhores condições de vida e por reconhecimento de seus direitos, apesar dos obstáculos que ainda persistem.
*Betânia Zarzuela Avelar é mulher afroameríndia, amazônida, cinéfila, produtora cultural e militante ambientalista. Graduou-se em Comunicação Social, pela UNIRON (2007) e Ciências Sociais pela UNIR (2018), mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba. Coordenou atividades de cineclubismo no Cine Gaia, em Rondônia, e assessorou projetos de Educomunicação, Cultura e Gestão Ambiental em comunidades no campo e cidade pela ONG Instituto India-Amazônia. Desenvolveu ações como produtora cultural no Sesc Rondônia de 2017 a 2021 onde respondeu pelas linguagens de Artes Visuais, Audiovisual, Arte e Educação e coordena o Programa Ecos Sesc/RO. É membro do GPA – Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde e no LaBia – Laboratório Didático e Geográfico de Ensino, Pesquisa e Extensão Beatriz Nascimento. Atualmente faz doutorado em Antropologia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde pesquisa performatividades da identidade “beradera” em Porto Velho (RO).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Paraíba
Edição: Carolina Ferreira