A notícia gerou polêmica por não deixar claro se a negociação para a entrega feita entre López e a DEA foi feita sem o envolvimento do governo do México, o que poderia configurar desrespeito à soberania do país.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, Thiago Rodrigues, escritor e professor de relações internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Inest/UFF), que acaba de lançar o livro “Drogas e o capitalismo: uma crítica marxista”, explica que, se confirmada a informação de violação de soberania, “não seria uma novidade, porque os Estados Unidos fazem isso rotineiramente”.
“Houve algumas vezes, inclusive, muito explícitas, como muitos anos atrás, em 1989, quando o então presidente do Panamá Manuel Noriega foi condenado nos Estados Unidos à revelia. Ele não estava presente no julgamento. Ele foi condenado por narcotráfico e soldados americanos capturaram ele na cidade do Panamá e o transportaram para os Estados Unidos sem nenhum tipo de acordo de extradição, ou seja, do ponto de vista do direito internacional, foi completamente irregular e ilegal”, afirma.
Ele acrescenta que, “desde o século XIX, sempre a questão da soberania mexicana foi testada, burlada e violada pelos Estados Unidos”, e que, no caso de López, tudo indica que “houve alguma negociata”, embora seja necessário mais investigação.
“Se realmente aconteceu isso, apesar de soar um absurdo, não seria algo sem antecedentes, algo não anunciado. Seria algo plenamente possível diante da tradição dos Estados Unidos lidando com o México e os países da América Latina em geral.”
Rodrigues enfatiza que essa política é adotada pelos EUA desde a virada dos anos 1960 para os anos 1970, quando o país enfrentava um salto no consumo de drogas legais e ilegais e o governo do então presidente Richard Nixon declarou guerra às drogas ilegais.
“Foi uma declaração de guerra, usando essa terminologia militar, belicosa, para justificar o combate aos produtores e aos traficantes de drogas, principalmente localizados nos países da América Latina e do Caribe.”
Paralelamente ao financiamento, ele afirma que começa uma “chantagem econômica”, com Washington ameaçando cortar financiamento e empréstimos de países que não se engajarem na guerra ao narcotráfico.
“Mas, ao mesmo tempo, essas políticas têm servido de apoio para vários governos da América Latina e do Caribe, para também fazer um populismo punitivista interno em seus próprios países e tentar se fortalecer em algumas situações específicas de crise, lançando mão também desse discurso antidrogas”, explica Rodrigues.
Rodrigues afirma que “a fórmula de enfrentamento do narcotráfico pela via militarizada sempre é um fracasso” porque resulta no fortalecimento do narcotráfico como forma de responder ao aumento da repressão ou no deslocamento, como ocorreu no caso Colômbia-México.
“O narcotráfico, como uma grande indústria ilegal na América Latina, surge nos anos 70 para os anos 80 e tem como centro funcional […] a Colômbia. […] Os Estados Unidos miram especificamente na Colômbia. Há uma série de iniciativas. A mais famosa delas é o Plano Colômbia, que começa […] em 2001, 2002. O que acontece? O narcotráfico na Colômbia não acaba […]. Os grupos do México, que eram antes empregados dos colombianos […], assumem a posição que o mercado deixou aberto para eles […] são promovidos de meros contrabandistas para narcotraficantes de primeira grandeza, que continuam a traficar a cocaína da Colômbia, porque a Colômbia continua a ser a maior produtora de cocaína do mundo até hoje.”
Ele avalia que não existe uma força militar capaz de dar conta do narcotráfico, mesmo com os planos de ajuda dos EUA, “porque o narcotráfico é um negócio que se especula que vai entre US$ 800 bilhões e US$ 1,5 trilhão por ano no mundo inteiro”.
“E uma parte substancial desses recursos, mais da metade, circula pela América Latina. O que acontece é uma depuração dos grupos. Grupos menores são eliminados, ou pelo Estado, ou pelos grupos mais fortes do narcotráfico, e o que sobra, na verdade, são organismos mais poderosos do que antes do ataque.”
Segundo Rodrigues, esse deslocamento do narcotráfico agora está mirando o Norte e o Nordeste do Brasil. Isso porque a via amazônica de escoamento da cocaína existe desde os anos 1980, mas era considerada uma rota mais difícil do que o Caribe. Agora, conforme “o Caribe e a América Central ficam mais congestionados nos planos de repressão, a Amazônia brasileira passou a ser mais interessante economicamente para os grupos narcotraficantes, o que atrai também os grandes grupos brasileiros”.
“Não é à toa que a gente tem registrado, nos últimos anos, uma disputa muito violenta da projeção do Comando Vermelho e do PCC [Primeiro Comando da Capital] em direção ao Norte e Nordeste do Brasil, justamente porque eles são intermediadores desse processo de exportar a cocaína brasileira, a colombiana ou a peruana em direção à Europa”, afirma.
O especialista afirma ainda que a política belicista não é a única maneira de violar a soberania praticada pelos EUA no contexto da guerra às drogas.
“Esses agentes da DEA, muitas vezes, vão aos países da América Latina, do Caribe com outras credenciais. Eles não vão com credenciais da DEA, […] entram com passaporte diplomático. Eles vêm disfarçados de outras coisas, de emissários econômicos. Isso já é uma violação de soberania na prática, porque não entram se apresentando abertamente como agentes federais dos Estados Unidos”, destaca.
Thiago Rodrigues afirma que a DEA tem jurisdição sobre o território dos EUA. Logo, um agente do departamento não poderia fazer uma investigação, muito menos negociar uma prisão fora do país sem a autorização do governo do país em questão. Porém, ele afirma que é isso que acontece nos últimos 45, 50 anos.
“Os Estados Unidos já agem como xerife na questão do combate ao narcotráfico há muito tempo. Essa ação às vezes tem a aprovação, a conivência ou a cooperação explícita dos países, mas muitas vezes não. E isso faz parte da prática diplomática militar dos Estados Unidos com a América Latina e o Caribe e não parece que vai deixar de fazer. E volto a dizer: independentemente do governo, pode ser um governo republicano, um governo democrata, a relação com a América Latina é sempre mais ou menos no mesmo tom.”