A região Nordeste foi a mais prejudicada pelo golpe militar de 1964. A tese foi elaborada pelo economista Celso Furtado, em texto publicado em 2004, em razão da passagem dos 40 anos da ditadura no Brasil.
Não era uma tese aleatória. Celso tinha conhecimento do tema e reunia incontestáveis qualificações para cravar esta opinião. Ele liderou, nos anos 1950, os principais planos de desenvolvimento para região e foi um dos primeiros cassados pelo regime militar.
“Para os nordestinos em particular, seu dano mais nefasto foi, sem lugar a dúvida, a interrupção do processo de reconstrução das anacrônicas estruturas agrárias e sociais de nosso país, numa região onde eram mais deletérios os efeitos do latifundismo e, paradoxalmente, mais profundo o movimento renovador em curso”, escreveu o economista, fazendo uma retrospectiva sobre os efeitos do golpe de 1964.
“No Nordeste, porém, onde me encontrava na época, as consequências do golpe foram muito graves, pois ali havia uma política social em andamento, e a repressão exercida desde o início liquidou com movimentos sociais de grande alcance, surgidos no decênio anterior e que prenunciavam uma ampla reconstrução de suas estruturas”, concluiu.
Esta tese é o ponto de partida da série de reportagem produzida pelo Brasil de Fato, que vai retomar o fio do pensamento de Celso Furtado para aferir os impactos do golpe para o Nordeste. Dividida em três episódios, a reportagem vai redescobrir a biografia de três personalidades cruciais para região naquele período – Celso Furtado, Paulo Freire e Josué de Castro.
Cada um em sua área de atuação foi responsável por elaborar ideias inovadoras para o Brasil do século XX. Eles estavam empenhandos para colocar na ordem do dia a urgência de avançar com a reforma agrária, a industrialização, alfabetização de jovens e adultos, a politização dos trabalhadores e o combate à fome. Um plano que acabou sendo interrompido pelos militares.
No primeiro episódio, a série faz um diagnóstico das condições sociais e econômicas do Nordeste nos anos 1950 e se debruça sobre as ideias construídas por Celso Furtado, em especial a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).
Um futuro em construção
Celso Furtado não está isolado. Outros pesquisadores também confirmam que, apesar dos efeitos negativos para o país como um todo, o Nordeste foi a região que mais se desestruturou com o golpe.
“Sem dúvida, o Nordeste foi a região mais atingida pelo golpe civil-militar, ou uma das duas principais regiões atingidas. O Norte e o Nordeste, mas, sobretudo, o Nordeste. Havia uma ação do governo federal para tentar minimizar as desigualdades regionais, com uma série de políticas, desde a criação da Sudene, que é a institucionalização na região da ação de planejamento, como também os incentivos fiscais, as isenções e incentivos fiscais”, afirmou o cientista político Túlio Velho Barreto, diretor de cultura e memória da Fundação Joaquim Nabuco.
“Entre os anos 50 e 60, o Nordeste foi o palco de muitos movimentos. Era a região em que tinha se acumulado o maior atraso social do país. O Nordeste era, então, a região mais atrasada socialmente e economicamente do Brasil”, explicou Vandeck Santiago, jornalista e autor das biografias de Francisco Julião e Josué de Castro.
O Nordeste, de fato, estava em evidência. A região virou pauta até nos Estados Unidos. No dia 14 de Julho de 1961, o economista Celso Furtado foi recebido na Casa Branca pelo então presidente estadunidense John Kennedy. O presidente recebeu com honras um economista que comandava, em outro país, uma superintendência regional. Era inédito uma localidade específica despertar tanto interesse do mandatário norte-americano.
“Nenhuma área, em nosso hemisfério, tem maior e mais urgente necessidade de atenção do que o vasto Nordeste do Brasil”, disse Kennedy, após a reunião com Furtado.
Aquele movimento incluía o “Nordeste oficialmente no mapa-múndi da Guerra Fria”, registrou Vandeck Santiago, no livro Pernambuco em Chamas – a intervenção dos EUA e o golpe de 1964.
O interesse não era aleatório. Os norte-americanos temiam que as condições sociais ruins da região favorecessem o surgimento no Nordeste de um movimento similar ao liderado por Fidel Castro em Cuba, em 1959.
“Precisamos de um programa de esforço concentrado de ataque a estes problemas na América Latina, caso contrário, os Castros irão surgir por toda a América do Sul nos próximos cinco anos”, disparou Kennedy, em discurso ainda como candidato a presidente, em 1960.
Uma série de reportagens do correspondente Tad Szulc publicadas no jornal The New York Times mostrava os graves problemas sociais do Nordeste e descrevia os movimentos populares em ascensão naquela época como graves ameaças de ruptura. Títulos como “Pobreza no Nordeste do Brasil gera ameaça de revolta” construíam uma imaginário temeroso sobre o Brasil.
Diálogos entre autoridades norte-americanas, inclusive o presidente, revelados no livro Na Lei ou Na Marra, do jornalista Paulo Markun, dão conta de que os EUA já tramavam uma ação contra o governo João Goulart. Na lista de possibilidades, o apoio militar a um movimento golpista.
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As matérias publicadas nos EUA davam conta de uma terra de contrastes. Na década de 1950, existiam dois Brasis: o do Sudeste e o do Nordeste. O primeiro vivia com intensidade as marcas do governo de Juscelino Kubitschek, um mineiro reconhecido pelo carisma sedutor, a astúcia política e a visão empreendedora. Desfrutava da ampla industrialização e da execução do Plano de Metas, resumido na famosa frase que marcou o governo JK: desenvolver 50 anos em apenas 5.
O Nordeste, por sua vez, registrava índices considerados feudais, ainda marcados pela herança colonial e pela violência do latifúndio. Segundo dados publicados no livro A Revolução que nunca houve, de Joseph Page, a expectativa de vida para 80% da população nordestina não ultrapassa os 35 anos. Apenas 4% das crianças que moravam na zona canavieira seguiam sendo amamentadas pelas mães após os seis meses de vida. Ler e escrever era artigo raro nas zonas rurais. O analfabetismo poderia chegar, em alguns territórios, a 80%.
O plano de desenvolver o Nordeste
Diante das dificuldades, era esperado que brotassem no meio do povo movimentos de transformação social. Foi o que aconteceu. Na cidade de Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, nascem as Ligas Camponesas, no Engenho Galileia. Era um movimento que inicialmente lutava por melhorias na qualidade de vida e, posteriormente, abraça a pauta da reforma agrária, com o apoio do deputado estadual Francisco Julião.
No Recife, a chegada de Miguel Arraes à prefeitura também traz novidades para a região. O governo dele avança com obras na periferia e cria o Movimento de Cultura Popular (MCP), com iniciativas de conscientização política da população periférica. Isso o ajudou a alçar voos maiores ao governo do estado, vencer as eleições e colocar na agenda do dia a defesa dos homens e mulheres do campo.
Esse clima de agitação acende o alerta do presidente. No final da década de 1950, JK resolve lançar mão de uma iniciativa arrojada para o Nordeste. Inicialmente, lançou o Grupo de Trabalho para Desenvolvimento do Nordeste – GTDN. Este documento embasará a criação de um órgão público, ligado diretamente à presidência da República, com orçamento destinado exclusivamente para industrializar o Nordeste. Seria a Sudene.
Ideias para superar o subdesenvolvimento
Celso Furtado era um economista nascido na cidade de Pombal, na Paraíba. Formou-se em Direito no Rio de Janeiro e em Economia na França. Trabalhou na CEPAL – Comissão Econômica para América Latina e Caribe. Era um órgão das Nações Unidas voltado para pensar a questão do desenvolvimento. Inspirado nessa experiência, Furtado escreveu os livros A economia brasileira e a Formação Econômica do Brasil, ambos considerados obras clássicas do pensamento sobre a realidade brasileira.
Celso já era um economista conhecido pelo governo JK. As ideias discutidas na CEPAL ajudaram a sustentar teoricamente o Plano de Metas, que pretendia desenvolver 50 anos em 5. Uma palavra foi decisiva para apoiar a equipe do governo a entender os problemas do Brasil: subdesenvolvimento.
“Era um debate que não era brasileiro. Era um debate que tentava responder por que alguns países não conseguiam se desenvolver e outros se desenvolviam”, explica Tânia Bacelar, economista e professora aposentada da UFPE.
Inspirado pelas ideias da CEPAL, Celso vai liderar o processo de formação da Sudene. O órgão será guiado por quatro pilares: industrializar a região, avançar com políticas para o semiárido, expandir a ocupação do Maranhão e diminuir a concetração fundiária, diversificando a produção na zona canavieira.
“A Sudene surgiu como uma esperança de recuperação do desenvolvimento do Nordeste, que vinha de uma fase muito difícil de secas constantes”, explicou Clemente Rosas, ex-procurador do órgão.
“Ele (Celso Furtado) achava que, digamos assim, as decisões econômicas mais importantes deveriam ser tomadas pelo próprio país e não subordinadas a multinacionais que quisessem vir para cá. E achava também que não se pode superar o subdesenvolvimento sem uma ação efetiva do Estado”, afirma Rosas, sobre as ideias que guiavam o economista paraibano.
A ditadura descaracteriza a Sudene
Com o golpe, os militares estabeleceram uma nova ordem: cassaram adversários, proibiram as organizações políticas dos trabalhadores e censuraram os jornais. Eles desconstruíram logo nos primeiros atos o que demorou séculos para ser priorizado, principalmente aquelas ações e ideias que tinham o desenvolvimento do Nordeste como meta.
A Sudene estava entre elas. Clemente Rosas foi diretamente impactado pela censura. Ele foi um dos trabalhadores procurados pelo regime, acusado de ser comunista. Diante do que viu em 1964, Clemente relata as perdas com o golpe.
“A primeira grande perda foi humana. E aí a Sudene viveu numa espécie de viuvez, discreta. Depois houve uma fase também de desestímulo até financeiro: aquele poder que a Sudene tinha de coordenar ou de orientar as atividades do governo federal no Nordeste foi desaparecendo aos poucos.”
Os planos de desenvolver o Nordeste permaneceram ativos durante os governos de Jânio Quadros e João Goulart, sobretudo com as ideias defendidas nas Reformas de Base.
“É outra razão para ele estar na lista dos primeiros exilados. Ele era um patrocinador das propostas reformistas do governo Jango”, afirma Tânia Bacelar, a respeito dos ataques dos militares ao pensamento de Furtado.
Apesar de sempre se expor como um técnico, Furtado não descartava a relevância do posicionamento político por trás da atuação profissional. Ele defendia a reforma agrária e confrontava os interesses da elite fundiária da região. “O economista não pode ser apenas alguém que vende serviços. Ele tem que ser alguém que transmita uma mensagem, baseada em valores, em uma visão do social, uma visão do país”, disse o economista.
“Foi isso que o regime militar interrompeu: a possibilidade do país galgar uma posição econômica e, consequentemente, acompanhada de uma distribuição de renda, que possibilitasse minimizar… tornar uma sociedade mais homogênea”, pontuou Túlio Velho Barreto.
Edição: Nicolau Soares