Os especialistas consultados por este jornal acreditam que o Brasil já vive a maior tragédia ambiental de sua história. “O nível de contaminação química do petróleo é gritante, altíssima. Em águas isso se torna ainda pior, porque é conduzida para outros locais por causa das correntes marinhas. Essa é a maior preocupação”, explica Marinho, que estuda a influência dos elementos no ecossistema e na vida do ser humano, além de ser ativista da ONG Greenpeace. “Vamos entrar agora numa fase de monitoramento dos ambientes costeiros, algo que demora de seis a nove meses de investigação. Ao menos durante esse tempo é recomendável evitar as áreas que tiveram contato com o óleo”, alerta. Nesta quinta-feira, o Governo de Pernambuco anunciou que vai investigar, em conjunto com oceanógrafos da UFPE, a extensão do dano causado pela tragédia. Além dessa tarefa investigativa, há algo ainda mais urgente a ser feito: tentar evitar que o piche chegue a outros lugares, como o santuário de Abrolhos ou Fernando de Noronha, explica o geocientista.
O petróleo é um combustível fóssil que possui mais de 200 hidrocarbonetos. O benzeno, por ser cancerígeno, é considerado o mais tóxico de todos. Ainda que o piche que chega às praias seja retirado, esses componentes químicos continuam circulando pela corrente marítima sem que ninguém perceba a olho nu. “O cenário otimista é que algumas dessas áreas não tenha a presença do benzeno, mesmo as que tiveram algum contato com o óleo”, explica Marinho. “O pessimista é a contaminação por benzeno. O ser humano não pode tomar banho se houver 0,7 mg por litro de água. A praia ficaria então imprópria para banho e para a pesca”. Somente o processo investigação poderá definir o nível de contaminação de cada praia afetada. Assim, os danos ambientais no litoral no Nordeste ameaçam se estender para o turismo, a pesca e a culinária, pilares fundamentais da economia local. O desastre ambiental pode facilmente se tornar econômico e social.
Diante da lentidão das autoridades, milhares de pessoas vêm enfrentando o trabalho quase impossível de limpar as praias com as próprias mãos, muitas vezes sem qualquer tipo de proteção. Em Pernambuco, muitas delas tiveram que buscar clínicas e hospitais por causa de sintomas de intoxicação. “A curto prazo, essas toxinas causam dor de cabeça, náuseas, vômitos, dificuldade respiratória, dermatites e doenças de pele”, explica o biólogo André Maia. O problema maior, porém, é que o benzeno é conhecido sobretudo por ser cancerígeno. “A longo prazo, essas pessoas podem ter problemas de origem respiratória, neurológica, circulatória e câncer. Essas pessoas deverão ser monitoradas pelo Governo pelos próximos 20 anos, para que se saiba os impactos do vazamento na saúde pública”, opina.
O contato imediato com o óleo também faz com que espécies marinhas como corais, mariscos e peixes morram sufocados. “Pela quantidade de óleo que cai, é muito difícil salvar as estruturas que vivem nos corais. O que se percebe de morte na praia é uma pequena parte, uma proporção de 1 para 10”, explica Maia, que trabalha com a reabilitação e soltura de animais silvestres através de seu projeto, o Trilogiabio, e em parceria com órgãos ambientais e estaduais. “Isto é, se uma espécie morre no litoral, significa que 10 estão sofrendo ações piores em alto mar”, completa.
“O desastre não poderia ter sido evitado, mas o Governo poderia ter diminuído seus danos”
Outras espécies, mesmo que não morram, vão absorver o benzeno e outras toxinas liberadas na água. “Quando não morrem, seres como ostras, mariscos ou sururu, muito comuns em Pernambuco, filtram todo esse material, que vai se acumulando. Uma pessoa que se alimenta pode ter um problema de saúde sério associado a essa contaminação”, explica Marinho. Maia complementa e explica como toda a cadeia alimentar pode acabar intoxicada: “Os animais que morrem intoxicados afundam em alto mar. Só que há outras espécies que se alimentam desses seres mortos. E aí esse produto começa a entrar na cadeia alimentar, realizando um processo que chamamos de biomagnificação [acúmulo progressivo de substâncias]”, explica. E exemplifica: “Uma alga contaminada é comida por um peixe pequeno contaminado, que é comido por um peixe maior também contaminado, e assim sucessivamente. O final da cadeia é onde vai se acumular a maior quantidade de toxinas. E o final dela somos nós”.
Como lidar com a contaminação
Marinho explica que o petróleo venezuelano “é mais consistente, denso”. Ao contrário de outros tipos, que ficam visíveis na superfície da água e podem ser aspirados por máquinas ou contidos com boias com mais facilidade, o óleo venezuelano que hoje chega ao litoral nordestino “viaja pelas correntes marítimas submerso”, em uma profundidade de 50 cm a 1 metro. Muitas vezes sequer é notado pelos navios que patrulham em alto mar. Ao longo dessa trajetória, explica o geocientista, parte dele é evaporado. Outra parte entra em decomposição, atingindo o fundo do mar de forma permanente. O que sobra continua sua trajetória pelas correntes marítimas, sofrendo com a temperatura e a salinidade da água e tornando-se o piche espesso que, agora, chega às praias do Nordeste.
Marinho explica que o Governo Federal poderia ter evitado essa chegada nas praias com uma ação mais rápida e coordenada, a partir do Protocolo de Contingência estabelecido por decreto 2013. O Ministério do Meio Ambiente garante que ele foi acionado em setembro, mas um ofício obtido pelo jornal O Estado de S. Paulo indica que isso não ocorreu até meados de outubro. “Há uma passividade dos organismos e dos governos, o que gera uma demora para a recuperação”, opina. Por exemplo, redes e boias de contenção poderiam ter sido empregadas mais cedo para evitar o avanço do óleo, assim como a contratação de especialistas que usam fórmulas matemáticas para tentar prever os caminhos das correntes marítimas. “O desastre não poderia ter sido evitado, mas o Governo poderia ter diminuído seus danos. Embarcações a 50 ou 100 metros de distância das praias poderiam ter evitado que o óleo chegasse a areia. Quando chega, nesse caso você também contamina o solo”, explica o geocientista.
O biólogo Maia lembra que, ao chegar na praia, “esse petróleo se fragmenta, arrebenta e se mistura com corais e areias”. Parte vem sendo retirado pelos voluntários e homens do Exército e da Marina em um lento processo de peneiração, “um trabalho muito mais difícil”, acrescenta. São partículas de dois a cinco milímetros que, se não são retiradas, podem voltar para a água em momentos de maré alta.
Marinho lembra ainda que algumas prefeituras não tiveram o cuidado ao manejar o piche retirado. Algumas chegaram a fazer valas para acomodar os sacos cheios de óleo, sem ter o cuidado necessário de colocar uma manta para evitar o contato com o solo. “Você pode acabar contaminando áreas que não estavam contaminadas. Pela falta de conhecimento e pela de preocupação em chamar pessoas técnicas que poderiam indicar como manejar esse material. Em Itapuama, por exemplo, há vários olhos d’água e lençóis freáticos importantes”. Essa praia, do litoral sul de Pernambuco, é considerada por ambos os especialistas como a que mais danos sofreu. Porto de Galinhas se salvou por pouco. E é possível que Carneiros, mesmo tendo sido atingida, também se salve. “Mas algumas praias, dependendo do teor de benzeno, infelizmente não poderão ser frequentadas pelos próximos anos nem poderão fornecer peixes e frutos do mar”.
Além de um trabalho de monitoramento e recuperação de anos por parte do poder público, Maia explica que o processo mais importante de renovação dependerá principalmente de um ente: a própria natureza.