Região tem 1ª geração de eleitores nascida com cisternas e campanhas eleitorais abordam novos temas
Além da luta pelo direito à água, organizações da sociedade civil do Nordeste definiram novas pautas estratégicas para orientar o diálogo com as candidaturas e o eleitorado nessas eleições de 2024. Temas como o impacto das energias renováveis no Semiárido, a desigualdade na divisão do trabalho doméstico e os crescentes ataques a povos indígenas e aos povos e comunidades tradicionais ganharam destaque nas iniciativas de conscientização realizadas na região.
A campanha “Não troque seu voto”, da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), tem reforçado a importância do fortalecimento da democracia e da defesa por propostas para convivência com o Semiárido. E o tema da divisão justa do trabalho doméstico é o foco da campanha promovida pela Rede Feminismos e Agroecologia do Nordeste. Já a resistência indígena aparece na plataforma de candidaturas individuais e coletivas, ampliando as denúncias de vários povos, como o Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca (CE).
Depois de seis anos de abandono do governo federal, nas gestões Temer e Bolsonaro, os programas sociais para a garantia do acesso à água para beber e para a produção da agricultura familiar voltaram a ser executados. Mas, por outro lado, cresce o desafio de dialogar com o eleitorado sobre a relevância das políticas públicas, devido à difusão de fake news e da desinformação sobre os mais variados temas relacionados a direitos.
Segundo Gleiceani Nogueira, assessora de coordenação da Assessoria de Comunicação da ASA (ASACom), outro desafio que surge nessas eleições é a disputa pelo voto da primeira geração significativa de eleitoras/es que já nasceu com as cisternas ao lado de sua casa. O Programa Um Milhão de Cisternas foi iniciado em julho de 2003 e, em 20 anos, foram construídas uma média de 50 mil a cada ano. Até 2022, foram construídas 1.146.210 cisternas e, em 2023, o programa, que estava em estado de abandono, foi retomado com um investimento de R$562 milhões. “Como essa nova realidade irá influenciar o voto em 2024?”, reflete ela.
As reivindicações que estão em destaque nessas eleições no Nordeste foram apresentadas no Encontro Regional da campanha Agroecologia na Eleições 2024, realizada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) em parceria com organizações, coletivos e redes estaduais e regionais de agroecologia. O evento faz parte de uma série de ações promovida em todas as regiões brasileiras para estimular o debate da Carta Política Agroecologia nas Eleições 2024 com as candidaturas municipais e o eleitorado, além de subsidiar a ação dos Poderes Executivo e Legislativo dos municípios. O documento aponta 51 propostas de políticas públicas municipais de apoio à agroecologia, combate à fome e promoção da segurança alimentar e nutricional que favorecem, ao mesmo tempo, o enfrentamento das mudanças climáticas.
Não troque seu voto
A campanha “Não troque seu voto” existe desde 2012 nos dez estados que compõem o Semiárido, que inclui os nove do Nordeste e uma parte de Minas Gerais. O Semiárido brasileiro tem mais de 1,1 milhão de km², 1.477municípios e quase 28 milhões de habitantes, o que o torna a região semiárida mais povoada do mundo. É também a mais chuvosa, mas 78% das precipitações acabam se perdendo pela evaporação.
Em 2012, ano de eleições municipais, o programa de construção de cisternas estava quase chegando à meta de um milhão de famílias atendidas, mas o Nordeste vivia a pior estiagem dos últimos 30 anos, e isso estava sendo muito utilizado por políticos em promessas de campanha. “A gente viveu essa realidade por muitos anos e ainda vive, de uma outra forma, pois a água sempre foi um elemento central nos discursos políticos no Semiárido”, analisa Gleiceani.
Ela conta que, naquela época, os programas emergenciais ainda eram usados como moeda de troca, mas já havia um trabalho muito forte de formação sobre as políticas de convivência com o Semiárido que buscavam conscientizar a população afirmando que o acesso à água não é um favor, mas, sim, um direito. “Fizemos uma parceria com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) voltada para essa denúncia, ‘Não troque seu voto por água’, com o objetivo de alertar, denunciar e fiscalizar os abusos eleitoreiros da água”, relembra a integrante da ASA.
Nas eleições municipais de 2016, a campanha da ASA voltou a ocorrer. Nas eleições presidenciais de 2018, após o golpe que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), ainda foi necessário manter o tema do acesso à água em evidência, por causa do desmonte das políticas públicas e programas sociais.
Já nas eleições municipais de 2020, a campanha ressurgiu voltada para o voto consciente em candidaturas que valorizassem a agricultura familiar e a agroecologia. Dois anos depois, nas eleições presidenciais de 2022, a campanha passou a fazer a defesa do voto, para enfrentar o crescimento de movimentos antidemocráticos, e da luta pela retomada de políticas e programas sociais que já haviam sido construídos e estavam desativados.
Segundo Roselita Vitor Albuquerque, assentada da reforma agrária na Paraíba e integrante da ASA, as reivindicações que ocorrem no Nordeste nessas eleições de 2024 estão ligadas à chegada dos empreendimentos solares e eólicos. “Vivemos um histórico marcado pelo latifúndio e pela falta de água. Olhavam para cá como um lugar de pessoas que sempre viveram de esmola, porém, nos últimos dez anos, esse lugar se reinventou, a partir das empresas de produção de energia renovável”.
Para Roselita, “as empresas de produção de energia renovável com capital estrangeiro não estão comprando, elas estão tomando nossas terras”. Ela conta que a relação das empresas com as comunidades é marcada por inúmeras violações de Direitos Humanos, a começar pela forma como são vistas. “Eu estava numa audiência para a liberação de um parque eólico na região de Picuí (PB), e ouvi muito claramente de um representante da empresa: ‘vocês só produzem para subsistência’, ignorando que a agricultura familiar no Nordeste produz, e produz muito.”
Os relatos das/os agricultoras/es indicam que as empresas entram nas comunidades para adquirir os contratos de propriedade violando, inicialmente, o direito à comunicação, uma vez que não explicam do que se trata, de fato, a presença desses empreendimentos na região. “Não se fala claramente sobre os impactos dessas energias na vida das pessoas, não respeitam decisões coletivas, mostrando ser um modelo de produção de energia que ameaça os nossos modos de vida”, denuncia Roselita.
Divisão justa do trabalho doméstico e ataques aos povos indígenas
Outra bandeira de luta que se destaca nas eleições no Nordeste diz respeito à campanha pela divisão justa do trabalho doméstico, apresentada por um conjunto de organizações que inclui a Rede Feminismos e Agroecologia do Nordeste e o GT Mulheres da ANA.
Segundo Luiza Carolina Silva, do GT Mulheres da ANA, a campanha é produto de um processo importante para as mulheres do movimento agroecológico, pois “une o feminismo à agroecologia, a partir de um debate que envolve a produção de alimentos, a segurança e a soberania alimentar das famílias. Na economia feminista, isso se refere à reprodução da vida, por seu papel fundamental para que a sociedade continue existindo”.
Embora exista há dez anos, a campanha passou por uma modificação na pandemia, quando escancarou as desigualdades entre os gêneros, devido, sobretudo, à sobrecarga das mulheres com o trabalho de cuidados. Assim, a campanha adquiriu mais uma perspectiva, que é a da saúde mental, adotando o questionamento “quem cuida de quem cuida?”.
“A gente tem visto o papel central das mulheres na resistência, o que já é uma nova carga de trabalho na defesa do seu território“, diz Luiza. Mesmo assim, ela ainda vê na região uma narrativa de que as políticas defendidas pelas mulheres são apenas políticas para as mulheres. “Quando as mulheres do Semiárido, por exemplo, fazem um debate sobre o uso da ‘terceira água’ para o cuidado, isso é uma política para mulheres, mas também uma política social”, ela explica.
Outro tema que está aparecendo com força nesse período eleitoral de 2024 refere-se às questões envolvendo a participação indígena na política brasileira, “algo ainda muito recente no campo político-partidário”, segundo Lauriane Tremembé, agrônoma no projeto Quintal das Margaridas.
“Desde 2023, a gente tem avançado consideravelmente nessa participação política, mas ainda passamos por diversas violências e estamos enfrentando o avanço do marco temporal no Congresso. Em 2023, houve mais de 200 assassinatos de pessoas indígenas, e, em 2024, a violência nas aldeias continua. Neste exato momento, há alguma terra indígena sendo invadida. Pessoas estão sofrendo e sendo violentadas”, diz Lauriane.
A denúncia prossegue com o caso do povo Anacé, no estado do Ceará, onde, recentemente, mais de 30 capangas armados foram ameaçar o povo que estava em uma retomada de suas terras. Lauriane conta que queimaram as plantações e derrubaram as construções.
“Tudo isso é fruto da não regularização dos territórios indígenas. No ano passado, houve a homologação de terras indígenas pelo presidente Lula, e uma delas foi o meu território, que foi homologado e aguardamos os processos de retirada, mas é um caso à parte, porque muitos dos territórios indígenas sequer foram identificados pela Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]”, explica Lauriane Tremembé.
Para Luiza, a campanha pela divisão justa do trabalho doméstico reforça a importância da agroecologia trazer para a centralidade alguns debates nesta eleição: “não tem como avançar num debate por um modelo de sociedade sem questionar a divisão do trabalho doméstico, as desigualdades raciais, os desafios indígenas e os embates com megaprojetos de energia renovável no Nordeste”.
Roselita lembra que o Brasil já tem um pouco do imaginário bonito do Nordeste, mas “o que sempre foi feio e marcante foi a desigualdade social”. “Acho importante trazer essa questão porque, em nível nacional, o olhar sobre nós sempre foi um olhar de muito desprezo. Não foi à toa que a gente viveu desigualdades históricas aqui, e essa desigualdade sempre foi marcada por decisões políticas que poderiam ser evitadas”, ela conclui.
Edição: Thalita Pires