“A inclusão é o maior pleonasmo da educação. Ou ela é inclusiva ou ela é qualquer coisa, menos educação”. É assim, de forma contundente, que a professora bacharel e licenciada em Letras – Português e Espanhol pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em neurociência e comportamento, doutoranda em Educação e fundadora da ONG Reinventando a Educação, Irene Reis dos Santos, aborda a chamada educação inclusiva.
Para ela, se os processos educacionais excluem alunos, pais, professores, gestores ou qualquer outro integrante da comunidade, e não contemplam as diversidades de experiências, condições e corpos, sendo atento às questões de raça, gênero, etnia, renda, orientação sexual, neurodivergências, deficiências, a finalidade educacional não se cumpre.
No Dia Mundial da Educação, o Diário do Nordeste publica uma entrevista com a especialista em educação inclusiva que atua na formação de professores de redes públicas e privadas no Brasil. Irene Reis que é a tradutora do livro “Reiventar a educação: abrir caminhos para a metamorfose da humanidade”, do filósofo Edgar Morin, esteve no Bett Brasil 2024, maior evento de inovação e tecnologia para Educação na América Latina, que ocorreu entre os dias 23 e 26 de abril, em São Paulo.
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A entrevista ao Diário do Nordeste foi concedida na quinta-feira (25), no evento em São Paulo, após uma mesa da qual Irene participou, cujo tema foi “Educação Inclusiva: Como as escolas podem garantir a Educação Para Todos?”.
Ao Diário do Nordeste, Irene falou sobre a necessidade de a inclusão ser um aspecto essencial a todo educador, independemente de qual disciplina seja a sua formação inicial e atuação no cotidiano; do acolhimento de famílias nos processos educacionais; de experiências exitosas de escolas reais nas quais a inclusão é elemento basilar e sobre a demanda de que a formação dos professores responda ao contexto escolar específico.
Na palestra você ressaltou uma frase que é “educação inclusiva é pleonasmo”. É uma afirmação inegável, mas na realidade ainda é desafiadora. Por que a educação inclusiva é pleonasmo?
Pleonasmo é uma figura de linguagem. Sou professora de português e de espanhol, sou formada em letras e estou falando de pleonasmo no sentido de comparar educação inclusiva com pleonasmos como entrar para dentro, sair para fora, subir para cima, descer para baixo. Se a educação precisa ser para todos, para que ela seja educação, conforme consta no nosso artigo 205 da Constituição Federal, a gente não devia dizer educação inclusiva.
A educação deveria pressupor que ela é inclusiva porque ou ela é inclusiva ou ela é qualquer coisa menos educação, ou estamos todos dentro ou se faltou alguém, não tem educação.
Nós só aprendemos em comunidade e só aprendemos unindo saberes. Como que a gente pode unir saberes, excluindo e não incluindo. Por que a maneira como eu aprendo importa mais do que a minha existência em si. Então, a maneira como eu aprendo, se eu estou com os profissionais capacitados para a promoção da aprendizagem, a maneira como eu aprendo, não devia ser relevante. Porque eles deveriam ter soluções para essa maneira especial como eu aprendo. E eu não devia ser excluída sob nenhuma hipótese, só porque eu aprendo de uma maneira diferente.
Então, por isso que eu insisto. A inclusão é o maior pleonasmo da educação, ou ela é inclusiva ou ela é qualquer coisa, menos educação.
No âmbito educacional, algumas realidades se repetem, independentemente de onde estejamos. Mas há especificidades. Você falou na questão da necessidade de ser inclusivo e abordar inclusão mesmo que o professor dê aula de biologia, física, ou qualquer outra que não necessariamente seja ligada às questões socioemocionais. Por que isso precisa ser evidenciado?
Porque, de novo, é inclusão, se não é exclusão novamente. Exclusivamente, o professor de inclusão vai trabalhar a problemática da inclusão. Exclusivamente o professor de educação racial vai trabalhar a questão antirracial, e não é isso, sabe? Primeiro que uma das falhas na educação é justamente a gente continuar dividindo tudo em caixinhas disciplinares. Aula de matemática, aula de geografia, aula de história. A gente devia ter coragem de assumir uma aprendizagem por projeto.
Assumir que a escola tem o potencial de ser uma grande comunidade de aprendizagem, trabalhando por projeto e projeto que saia da curiosidade genuína real da criança, não da minha imposição como adulta educadora, autoridade. Então já começa aí a falha. Eu não incluo o desejo do meu aluno. Eu não incluo as perguntas que as crianças fazem.
Quando eu comecei o meu mestrado, eu precisei de um ano e meio para ter uma pergunta de mestrado. Porque eu fui tão treinada para dar respostas e, como pesquisadora, eu não sabia mais fazer perguntas. Isso é um erro.
Então, as nossas crianças dos 4 ou 7 anos de idade, elas são uma metralhadora de perguntas. Elas fazem uma pergunta atrás da outra o tempo todo, mas aí elas vão percebendo que as pessoas adultas do entorno estão pouco interessadas em fazer parte daquelas perguntas e elas param de fazer perguntas. Então, a gente mata um ser perguntador já na primeira infância. Essa é uma outra grande falha que a gente tem em educação.
Mas ainda que a gente seja uma escola muito tradicional, que continue dando aula de 45 e 50 minutos e dividindo a vida entre história, geografia, português e matemática, ainda assim a gente tem que ter a obrigação de falar de educação antirracista, de falar de educação sócio-emocional, de falar de projetos de vida e de incluir na pauta da nossa aula o que aparece em campo.
Por exemplo, se eu sou professora de Geografia, preparei uma aula e eu quero dar essa aula do começo ao fim. Se o meu aluno agride o outro na sala de aula, em vez eu transformar isso em material didático e colocar a aula que eu preparei em segundo plano, eu mantenho a minha aula e mando os meus alunos para a diretoria.
Então são coisas do dia a dia da escola, que são as violências que a escola pratica, mas que depois volta. O bullying pode voltar da pior forma possível. Casos de exclusão, de bullying, de racismo e de questões ligadas a gênero que não foram solucionadas pela escola, foram ignoradas, como se fossem temas menores, porque o tema maior é pôr a criança no vestibular.
O que seria um desvio de finalidade dos processos educativos, não é?
Muito bem. E até se eu partir dessa base de que a importância maior é pôr a criança no vestibular, menos de 20% dos nossos jovens estão acessando o vestibular e aí esse indicador cai drasticamente quando a gente fala de jovens de escola pública. Quantos jovens de escola pública estão em universidades públicas? Bom, então a gente está falhando bem. Se a finalidade é essa e a gente não está dando conta, então por que a gente não readapta a finalidade para ver se a gente consegue um resultado melhor? Porque fazendo isso que a gente tem feito, o resultado está caótico.
Durante muito tempo, quando se falava em inclusão, de algum modo se atrelava “somente” à acessibilidade e hoje é muito mais presente o debate sobre inclusão e diversidade, em consideração das diferentes condições e experiências. Como ampliar essa perspectiva?
Eu nem penso nem trato sozinha. A hora que a escola entender que o cliente dela não é o pagante de impostos ou de mensalidades, ou seja, os pais ou responsáveis, ela vai entrevistar o aluno dela. Esse é o cliente dela. Então, ela vai criar um departamento dentro da escola, que é o departamento de satisfação. O cliente está satisfeito? Quem é o cliente? Meu aluno. Querido, como que a nossa escola pode ser melhor? Como você tem vivido o dia a dia dessa escola? Quais são as soluções que você aponta? Quando eu tenho aluno de 8 anos de idade e eu pergunto para ele assim e aí, você gosta da escola? Qual que é o melhor horário da escola? Ele diz que adora a entrada porque pode brincar e quando falo da aula a criança murcha, tem alguma coisa errada.
E o que as escolas fazem reduz o tempo de intervalo, antecipa a entrada para mais cedo e põe a criança no paradigma da produtividade. É um mini adulto que precisa produzir e precisa render. O lúdico é desvalorizado.
Você mencionou na palestra alguns exemplos de escolas inclusivas, como a Escola Municipal de Educação Infantil Nelson Mandela, na Zona Norte de São Paulo. O que essas escolas têm de elemento incomum? Qual é esse caminho prático a ser seguido?
Primeiro o acolhimento da família. O não ter medo da família. As pessoas cuidam, lidam do tema família jogando a responsabilidade só para a família. Eu sei, a família tem responsabilidade mesmo, mas que família a gente vive? Cada vez mais famílias disfuncionais. Famílias de pais separados, em que a mulher é arrimo de família. Vemos também nosso grande machismo, porque essa família é ‘só a mulher’.
Na grande parte das vezes, essa mulher tem que trabalhar fora e também tem que estar dentro da escola, resolvendo os problemas que a escola não dá conta de resolver e não assume que não dá conta.
Quando eu, como educadora, estou suspeitando, por exemplo, que o seu filho tem autismo, é preciso ter empatia com essa mãe e pensar ‘eu vou te ajudar’. Você vai procurar esse profissional. Vai orientar. Ah, então a escola virou terapia? Eu não sei do que você vai chamar a escola, mas a escola tem que ser assim, um centro de desenvolvimento humano. Tudo ligado ao desenvolvimento humano. É da conta da escola e ela precisa fazer os encaminhamentos, jogar bomba no colo do pai e sair correndo não é uma atitude compassiva, não é uma atitude amorosa e, portanto, não é uma atitude educadora.
Outro ponto é também olhar para o acolhimento dos professores e dos demais trabalhadores da educação nessa demanda por respeito e efetivação da inclusão. Quando essas pessoas são ignoradas, como esse processo de educação inclusiva fica?
Temos que entender que todo mundo que faz parte do crescimento de alguém é educador. Mas nem todo mundo fez curso para ser educador, então ele precisa ter formação para isso. Então as reuniões pedagógicas da escola deviam ser feitas desde o profissional do transporte da van, o porteiro, a faxineira, a cozinheira. Vamos parar todo mundo aqui e vamos receber essa formação. A hora que a gente conseguir fazer isso, vai ficar muito melhor.
Mas no caso dos professores, em especial, a hora que a gente conseguir fazer com que a escola, antes de pensar em comprar equipamento tecnológico, invista no professor, tudo muda também de figura. O que é investir no professor? É investir desde o espaço de descanso dele, nas horas dos escassos intervalos, até investir na formação. Porque as formações iniciais, por melhor que elas sejam, a atuação no contexto específico é outra história. A gente acha que a formação inicial vai responder tudo. Mas é a formação contínua que é o caminho.
Precisamos assumir que o ser humano não é um ser pronto. Como não é um ser pronto, ele está em desenvolvimento, então, todas as questões que envolvem o desenvolvimento humano precisam ser ressignificadas. Aceitar que a formação inicial não vai dar resposta para tudo. Você escolheu ser educador. É intrínseco a sua escolha ter formação contínua.
E uma formação que responda ao seu contexto escolar, porque também é outra coisa. Essa é a falha das secretarias de educação. As secretarias de educação massificam as formações dos professores como se todos eles precisassem saber ‘X’ coisas sendo que nas escolas as realidades são absolutamente diferentes. Então, a educação precisa ser contextualizada antes de qualquer coisa.
*a repórter viajou a convite da organização do evento